Entre muitas outras coisas, a pandemia ensinou-nos que para a vencermos temos de confiar: confiar na ciência, nos médicos, em quem nos governa, no sistema financeiro, nas empresas, nos meios de comunicação, em nós mesmos e nos outros à nossa volta. Neste momento, se a falta de confiança, a ansiedade e o medo podem asfixiar a atividade económica, a desconfiança ou o excesso de confiança e a ousadia intrépida podem arrasar a saúde pública e a própria vida. Por conseguinte, resta-nos confinar e confiar, sem mais, de forma livre e inteligente.
Desde o ponto de vista empresarial, é sabido que esta dimensão relacional da confiança tem uma importância fundamental para o ultrapassar de momentos críticos e de maior vulnerabilidade das pessoas e da organização. Gera um ambiente de estabilidade e segurança, que potencia soluções criativas e inovadoras e uma maior eficácia do talento coletivo.
Tal como nas empresas, assim também é na sociedade. Único e irrepetível na sua individualidade, todo homem é um ser aberto à relação com os outros. A sociedade estrutura-se em torno de multíplices expressões comunitárias (famílias, associações, empresas, clubes, etc), sem deixar de respeitar a individualidade, autonomia e liberdade de cada um. Interligando pessoas e instituições em geral, a convivência social ganha forma numa rede de relações de encontro e de reciprocidade que traz à vida uma melhor qualidade e beleza.
É nessa convivência que, por um lado, floresce a solidariedade, como a tendência natural para colaborar no sentido de dar resposta a causas comuns, com espírito de iniciativa e responsabilidade. A cumplicidade social que se cria, por outro lado, é garante de apoio em situações de vulnerabilidade ou fragilidade como sejam as desencadeadas por motivo de desemprego, fome, doença, conflitos, violência, solidão, idade, etc, etc. mas também garante de futuro para a própria sociedade.
Este construir diário de uma sociedade, sustentável e inclusiva, é, antes de mais, tarefa de todos nós, responsabiliza-nos a todos, mas é também a razão de ser do Estado e da autoridade política. Assegurar as condições para que todos, mesmo todos, possam nascer, formar-se, crescer, realizar-se e amadurecer é a missão básica do Estado. Ter uma visão de sociedade, um projeto de futuro consistente e sustentável é o que se espera de quem governa.
Aliás, se consultarmos alguns estudos sobre a confiança nas autoridades políticas, como o publicado em 2019 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, 3 conclusões sobressaem. Em primeiro lugar, conclui-se que os “níveis de desconfiança face às instituições políticas estão diretamente associados ao aumento do desemprego, dos níveis de pobreza e das desigualdades sociais, assim como aos débeis níveis de desempenho e crescimento da economia”. Em segundo lugar e mais além da economia, a confiança nas instituições políticas está associada a um entendimento mais exigente e menos passivo da cidadania por parte das novas gerações. E, em terceiro lugar, que a crise da confiança é, claramente, um “desenvolvimento negativo e gera, simultaneamente, cidadãos menos propensos a respeitar as regras informais e as normas legais da democracia”.
Naturalmente que os problemas sociais com que o Estado se confronta são, na sua maioria, complexos, exigindo abordagens multidisciplinares e delicadeza de julgamento. A pandemia, mais uma vez, nos mostrou isso mesmo claramente. De repente, enfrentamo-nos com desafios no sistema de saúde, na economia, no emprego, na educação, na segurança social, na convivência, nos valores, mas essa complexidade apenas significa que estamos a lidar com problemas de verdadeira natureza política, onde as soluções não são meramente científicas e/ou tecnológicas, mas requerem uma multiplicidade de olhares e um outro tipo de considerações nomeadamente éticas. Bertrand de Jouvenel, na “Teoria pura da política”, afirmava que os problemas políticos não têm uma solução, mas requerem decisões com base em acordos a que se chegam, o que é completamente diferente. Por isso, é importante clarificar as prioridades com sentido prático e sentido de futuro, alinhar os critérios, decidir e assumir a responsabilidade da decisão. Em suma, há que governar e não apenas gerir. E se, em teoria, pode por vezes parecer que não faz grande diferença, na prática faz mesmo toda a diferença.
É por isso que me entristece profundamente a proposta de lei da eutanásia, pelo que representa de falhanço de uma sociedade (a minha, a nossa) que, não conseguindo dar condições medicamente adequadas e humanamente dignas, leva alguém a não querer mais viver, seja porque considera que a sua vida não tem sentido, ou porque sente que a sua vida perdeu dignidade, ou porque sente que é um fardo, ou porque está só no mundo.
Podemos argumentar de muitos modos, mas o que é facto é que fomos até agora incapazes de responder como sociedade a este problema. Somos uma sociedade em que o sentido de comunidade está rarefeito e operacionalizar uma adequada rede de cuidados paliativos parece ser missão impossível.
O recente acórdão do Tribunal Constitucional sobre a lei da eutanásia considerou que o direito a viver não pode transformar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias. Mas, então, porque é que a única solução “gratuita” é a de colocar fim à vida e não a de alterar as circunstâncias? Que sociedade estamos a construir? Que sociedade deixaremos como legado? Onde fica a solidariedade e a compaixão com a fragilidade humana? Como fica a confiança numa sociedade que nos diz que nem todas as vidas têm o mesmo valor? Estas são interrogações que não podemos deixar de nos colocar, de forma séria, honesta e responsável.
Em abono da verdade, também me alegra ver que muitos são interpelados por estas questões e saber que as iniciativas vão surgindo como resposta a este e tantos outros desafios sociais. Sem sair da AESE, recordo-me da multiplicidade de instituições sociais que vão passando pelo GOS – Programa de Gestão de Organizações Sociais, nos seus 12 anos de vida. Mas em qualquer outro programa, cruzo-me com gente muito boa, que faz muito e é um enorme sinal de esperança.
Publicado no Dean’s Corner do Jornal de Negócios
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