Marta Lince de Faria
Professora de Fator Humano na Organização e de Microeconomia na AESE Business School, Cátedra de Ética da Empresa e na Sociedade AES /EDP
A ética é a ciência que estuda o modo de alcançar uma vida humana plena, cheia de vida e de sentido. Costumo dizer que todos queremos ser seres humanos cheios de humanidade e que transbordam humanidade à sua volta, nesse sentido, a ética é a ciência da excelência humana.
A Inteligência Artificial uma tecnologia de uso geral, criada por seres humanos e que tem múltiplos usos na vida humana. A reflexão ética faz-se, como no caso de qualquer tecnologia, avaliando riscos e oportunidades dos seus diferentes usos para o desenvolvimento humano.
Há, no entanto, algo de muito peculiar relativamente a esta tecnologia. A Inteligência Artificial não é só mais uma tecnologia. O que a torna única é o facto de reproduzir e ultrapassar funções que antes eram realizadas por humanos e que implicavam o uso da inteligência natural. Esta tecnologia parece desafiar o nosso lugar no mundo, o que faz com que a reflexão ética acerca da mesma se torne muito mais interessante.
Quais são os principais desafios éticos associados ao desenvolvimento e uso da inteligência artificial?
Gosto de agrupá-los em três grandes grupos: desafios micro, desafios macro e desafios meta. a) Os desafios micro têm que ver com as alterações de padrões de comportamento dos seres humanos que podem não ser benéficas para o seu desenvolvimento: aqui incluem-se as adições à tecnologia, o atrofiamento das atividades cognitivas por deixarmos de desenvolver funções como a memória e o raciocínio e a perda de habilidades relacionais. b) Os desafios macro têm sobretudo que ver com a reconfiguração da sociedade e da economia, e as consequências humanas que daí podem resultar. Neste grupo coloca-se também a possibilidades de os robots chegarem s substituir, manipular e dominar os seres humanos, como alguns especialistas têm afirmado temer. c) Finalmente, os desafios-meta têm que ver com a essência do que significa ser humano: será possível replicar funções como a consciência moral ou o livre arbítrio? A mente humana identifica-se com o cérebro?
Quais são os benefícios económicos de adotar uma abordagem ética para o uso da inteligência artificial numa organização?
A ética não pode estar subordinada aos benefícios económicos porque a ética não é uma técnica instrumental para alcançar outros fins. Se a ética é a ciência da excelência humana, todos os outros objetivos que tenhamos devem ser orientados e integrados na abordagem ética.
Não obstante o que se disse no parágrafo anterior, até economicamente se tem verificado que uma gestão ética dos recursos acaba por ser benéfica: porque constrói relações sustentáveis de confiança com os vários stakeholders da empresa. E como ninguém faz negócios sozinho, não há negócios sem boas relações humanas.
De que forma as empresas podem colaborar com outras partes interessadas, como Governos e organizações da sociedade civil, para abordar questões éticas relacionadas com a inteligência artificial?
De momento, ainda há muita incerteza no ar e os riscos éticos reais aparecem lado a lado com distopias que nos assustam. Diria que o mais importante, por agora, é identificar os desafios micro – comportamentais – e macro – sobretudo, a reorganização da força de trabalho que implicará realocação de pessoas e desemprego. Em segundo lugar, parece-me importante que as empresas comuns comecem a lidar com ferramentas de Inteligência Artificial, porque se a AI é uma conquista humana para melhorar a vida de milhões de pessoas e o desempenho de milhões de organizações: poder ter acesso a esta tecnologia e não lhe aceder, seria também uma falta de vontade de melhorar as condições de vida de muitas pessoas. Finalmente, por agora, a maior parte da responsabilidade está nas empresas de tecnologia que estão na linha da frente do desenvolvimento da Inteligência Artificial: à semelhança do que aconteceu no passado com a bomba atómica, o poder de influenciar o futuro de muitos está nas mãos de uns poucos e não é fácil que outros, académicos e entidades públicas, cheguem sequer a compreender o que se está a passar nos laboratórios.
Estão os líderes preparados e consciencializados para esta revolução da inteligência artificial?
Penso que ninguém está preparado, porque não sabemos como será o futuro. Neste caso, estar preparado é ter a humildade de reconhecer que ninguém está preparado para isto. Vejo que os líderes e a sociedade em geral estão, sobretudo, apreensivos e algo paralisados. Repito, parece-me importante arregaçar as mangas e começar a responder aos desafios comportamentais do uso da tecnologia, que começa a ter impacto negativo na vida sobretudo dos jovens, e a preparar programas de skill-up e safety nets para as pessoas que serão substituídas por AI nos seus empregos.
Como é que a educação pode desempenhar um papel na promoção da ética entre os profissionais de inteligência artificial e aqueles que interagem com essas tecnologias?
A literacia no campo das humanidades pode ser fundamental para ajudar estes profissionais a manterem os pés na terra e a desenvolverem o seu trabalho com sabedoria, no entanto, as pessoas têm de estar cativadas para se deixarem educar neste âmbito. Vejo que a excessiva especialização da formação na nossa sociedade faz com que sejamos muito competentes numa área concreta e, ao mesmo tempo, completamente ignorantes noutras áreas. Não vejo que a maioria dos estudantes das áreas da tecnologia tenha maturidade humana para perceber a riqueza do mundo orgânico e do mundo humano. A tecnologia seduz-nos com a sua rapidez e a sua precisão. Tenho esperança de que o poder que lhes é dado produza nas pessoas uma vertigem que as faça questionarem-se acerca do sentido da vida e da essência do que significa ser humano e que, nesse momento, descubram a necessidade de se aprofundar em humanidade.
Entrevista publicada na Executive Digest >>