6/05/2019, Lisboa
Marta Mendonça, Professora de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, esteve na AESE, a 7 de maio, em Lisboa, a convite do Agrupamento de Alumni, numa sessão que visou promover uma reflexão sobre os modos de pensamento que impactam o nosso comportamento enquanto sociedade.
“Vivemos uma época de aceleração da razão calculadora e de implementação de estratégias cada vez mais intrusivas e menos intuitivas, que nenhum de nós tem ângulo para avaliar no seu conjunto e que, no entanto, têm implicações em múltiplos aspetos da vida humana. Uma aceleração deste tipo”, segundo Marta Mendonça, “se não for acompanhada por uma reflexão permanente sobre o seu sentido e sobre o sentido da vida humana, torna-nos imensamente vulneráveis e contrai profundamente o horizonte da existência: expõe-nos ao risco de correr cada vez mais depressa sem saber exatamente com que rumo, ou com um rumo só conhecido por alguns e definido por muito poucos. Num contexto como o presente, que muda a grande velocidade, a reflexão filosófica – que pela sua própria natureza relativiza e situa o discurso puramente instrumental – pode ajudar a introduzir clareza e profundidade, e contribuirá sempre para promover a liberdade humana no seu sentido mais radical e vitalmente mais significativo: fá-lo repropondo sempre de novo as questões da verdade e do sentido.” Numa entrevista sobre o tema, a Professora respondeu a algumas questões desenvolvidas durante a sessão com os Alumni AESE:
Como filósofa, como carateriza a sociedade em que vivemos?
MM: “A sociedade em que vivemos não é homogénea, nem as suas características são idênticas em toda a parte. Há a sociedade que transparece nos meios de comunicação e aquela outra, imensamente mais vasta, que não é notícia; há a sociedade europeia – que alguns caraterizariam como envelhecida e reativa – e as sociedades africanas, por exemplo, em que estes fenómenos são residuais. Considerando unicamente a sociedade europeia ocidental que os meios de comunicação deixam ver – quando se passa para lá da Alemanha, a realidade é também diferente –, talvez se deva dizer que vivemos numa sociedade ameaçada por dentro, pela desilusão e pela falta de esperança; uma sociedade que abandonou a crença no homem e nas utopias e que não encontrou – ou não recuperou – ainda uma âncora onde fundar as suas aspirações de plenitude, tanto humana como social.
Este facto faz com que o momento presente seja imensamente desafiante do ponto de vista filosófico, pois quanto mais aguda é a consciência de viver uma época de crise – social, cultural, antropológica – mais se faz sentir a necessidade de aprofundar a reflexão. Nesta perspetiva, as épocas de impasse ou de crise de sentido como a nossa podem ser encaradas também como grandes oportunidades: na medida em que nos desinstalam, permitem identificar – e eventualmente superar – o que a própria cultura tem de parcial.”
Quais os pensadores que no seu entender mais influenciaram a sociedade, na qual se impõem conceitos como o relativismo, o individualismo e o consumismo?
MM: “A história do pensamento ensina-nos, por um lado, que os pensadores mais influentes nem sempre são os mais mediáticos ou aqueles de quem mais se fala e, por outro lado, que cada momento da cultura é influenciado por múltiplas correntes de pensamento, que são veiculadas por múltiplas formas de expressão cultural, relativamente às quais temos quase sempre pouco distanciamento crítico. Isto significa que a perceção da identidade de uma cultura, sobretudo quando nos aproximamos dela através de ‘ismos’, tem sempre algo de cego, de parcial e de redutor.
Este conjunto de condicionamentos recomenda que tenhamos alguma precaução na identificação, tanto dos pensadores como dos ‘ismos’, que conferem identidade ao momento em que vivemos. Talvez uma das caracterizações mais abrangentes da cultura contemporânea ocidental (e só dela) seja a que a descreve como uma cultura pós-moderna. Trata-se também de uma caraterização parcial e, nesse sentido, redutora: não só porque a cultura ocidental não é homogénea, como porque nela se continuam a fazer sentir, muito mais fortemente do que poderia parecer à primeira vista, influências culturais que não remetem para a modernidade filosófica, entre as quais, se deveria destacar o cristianismo. Esta caraterização realça, no entanto, o seguinte aspeto relevante: a cultura contemporânea de que temos mais nítida consciência não acredita nas promessas modernas, viu-se defraudada por elas, mas não encontrou ainda todos os recursos teóricos que lhe permitam ultrapassar o paradigma moderno.
Deste ponto de vista, os pensadores mais influentes são tanto os que contribuíram para forjar a modernidade – de Galileu ou Francis Bacon, a Kant ou Hegel – como os que denunciaram as pretensões não cumpridas do ideal moderno ou a parcialidade do seu olhar: aqui haveria que incluir, por um lado, os pensadores que elaboraram uma hermenêutica da suspeita (Freud, Marx, Nietzsche, e alguns mais) e, por outro lado, os pensadores que questionaram – em perspetivas diversas – a antropologia da finitude da razão que está no centro da modernidade (Spaemann, MacIntyre, Anscombe, etc.).
Neste ponto, o contributo cristão continua a ser muito significativo: creio que ainda não temos recuo suficiente para avaliar, por exemplo, o contributo de alguns textos de S. João Paulo II – designadamente, as encíclicas Fides et ratio e Veritatis splendor – para o relançamento do debate sobre as pretensões de verdade da razão humana.”
À luz da Doutrina Social da Igreja, como explica a coexistência destas tendências a par com o dogmatismo, a solidariedade e a sustentabilidade social e ambiental?
MM: “Os ‘ismos’ são com frequência interdependentes e coexistem habitualmente com os seus contrários. Tendo a pensar que os 3 ‘ismos’ referidos não têm a mesma radicalidade: o consumismo é talvez mais uma consequência do relativismo e do individualismo, do que um fenómeno autónomo, explicável por si mesmo. Já a relação entre o relativismo e o individualismo é muito profunda.
A coexistência de atitudes opostas – relativismo vs. dogmatismo, individualismo vs. solidariedade, etc. – pode ver-se como um sintoma da parcialidade dos ‘ismos’ mencionados. Embora alguma lógica moderna nos apresente aos nossos próprios olhos como relativistas, individualistas, consumistas, etc., essa leitura do humano é sempre de algum modo posta em causa quando se observa que as aspirações humanas reais não se deixam enclausurar nessa lógica, e ultrapassam sempre os limites que a teoria ou as ideologias impõem à imagem que temos de nós próprios. É essa captação não ideológica da realidade humana, feita à luz de uma razão que não descrê das suas capacidades de aprofundar o enigma do homem, que a Doutrina Social da Igreja nos desafia a prosseguir. Assim considerada, a Doutrina Social da Igreja só pode ser vista como um horizonte não ideológico, no seio do qual é possível aproximar-se do homem real, que vive e coopera livremente com outros e aspira a realizar-se juntamente com eles, sem banalizar nem absolutizar os contrastes e tensões que também atravessam a sua vida.”
O que pensa da AESE promover esta reflexão antropológica e filosófica sobre a sociedade entre dirigentes e executivos?
MM: “É da maior importância promover a reflexão filosófica – designadamente a que se refere à antropologia – em todos os contextos académicos. Felicito a AESE por facilitar e promover essa reflexão no seu âmbito específico de formação e de investigação.” A sessão de continuidade da AESE terminou com um debate alargado aos participantes.