A logística no sector da saúde, ao contrário de outras indústrias, é muitas vezes vista apenas como uma função que tem de existir para fazer chegar os fármacos, os dispositivos médicos e tantos outros produtos que são utilizados ou administrados no dia a dia do hospital ou clínica.
Ao não olhar para a logística hospitalar como uma função crítica, que pode simplificar e otimizar a cadeia de valor das clínicas e hospitais, o setor da saúde em Portugal está a desperdiçar recursos que, em tempos como os que hoje vivemos, são vitais para salvar vidas.
Como deve, então, o setor da saúde olhar para a sua função logística, e de que forma a digitalização desta função pode trazer valor acrescentado para todos os stakeholders?
Na nossa opinião, a logística hospitalar deve ser encarada como uma função crítica e estratégica para este setor. A restruturação das cadeias de abastecimento dos hospitais e a digitalização da função logística são algumas das sugestões que procuramos debater e justificar neste artigo.
Se olharmos para a função logística nas várias indústrias, identificamos grandes investimentos, tanto ao nível das infraestruturas como ao nível da tecnologia. Armazéns automatizados, software que permite planear ao ponto de entregar peças quando são precisas na produção (JIT), soluções de picking, mobilidade para os operadores logísticos, são apenas alguns dos exemplos de investimentos que visam simplificar e otimizar a função logística, seja para evitar desperdícios, seja para garantir a promessa de serviço aos clientes.
No setor da saúde, porém, em particular no universo nacional, vimos alguns indícios de baixo investimento. Ao visitar vários armazéns centrais hospitalares, facilmente se percebe que funcionam em espaços adaptados para o efeito, que as cadeias de abastecimento e distribuição não são uniformes e que as soluções de mobilidade são das poucas ferramentas usadas pelos profissionais que, todos os dias, garantem que os serviços hospitalares têm todo o material de que necessitam para tratar os seus pacientes. Esta situação gera ineficiências, desperdício e, mais importante, consome tempo de recursos cujo foco devem ser os pacientes. Quais as iniciativas que, na nossa opinião, podem e devem então ser levadas a cabo neste setor, para elevar a função da logística hospitalar?
Em primeiro lugar, analisar de forma estratégica a criação de centros de distribuição regionais. Se os hospitais não foram desenhados para ter grandes armazéns, porque não montar estruturas regionais que permitam uma maior uniformização e eficiência dos canais de distribuição? Com tal estrutura e com as soluções de tecnologia mais adequadas, seria possível reduzir stocks em toda a cadeia ao mesmo tempo que se reduziam as quebras com uma maior flexibilização e agilidade de toda a cadeia. Existem diversos e bons exemplos de tais iniciativas, no setor privado da saúde, implementadas com sucesso.
Em segundo lugar, o setor deverá dotar-se de soluções e tecnologias que permitam implementar esta visão de cadeia de abastecimento. Atualmente, os hospitais usam os seus softwares clínicos para suportar a sua logística hospitalar. Estas soluções, contudo, foram desenhadas, e bem, tendo por base as necessidades clínicas e as funções core de um hospital e, como tal, carecem de funcionalidades que normalmente encontramos, por exemplo, em ERP robustos desenhados a pensar também nas necessidades e complexidades de toda a cadeia de abastecimento, não de um único, mas de vários estabelecimentos. A inexistência de uma base de dados única de artigos, utilizada por todos os estabelecimentos públicos de saúde é um exemplo das limitações à implementação de boas práticas neste setor.
A implementação de um ERP robusto e com forte capacidade ao suporte da atividade logística, como é, por exemplo o SAP S4/HANA, devidamente integrado com os sistemas clínicos existentes, permitirá ao setor da saúde capacitar-se para a digitalização necessária desta função. Dispor de uma base de dados única de artigos nos vários hospitais, o que permitiria a implementação de uma cadeia de abastecimento com visibilidade total das necessidades, implementar estratégias de reposicionamento dos armazéns avançados e disponibilização de serviços com base nos consumos históricos e, também, na previsão das necessidades futuras, resolver os abastecimentos dos consignados residentes e não residentes nos hospitais, evitar o maverick buying dos vários serviços, são apenas alguns dos exemplos de desafios reais que tais soluções ajudam a resolver.
A par da implementação dos ERP (enabler), o setor deve ainda garantir que todos os fluxos e registos ocorrem a par dos eventos logísticos relevantes (uma receção, um consumo, um abastecimento, uma quebra) e de forma desmaterializada (paperless). Para tal, devem garantir que são desenhadas e implementadas aplicações móveis, como extensões do ERP, devidamente customizadas para o setor e aos vários intervenientes envolvidos em toda a cadeia, desde o técnico do armazém até ao enfermeiro que, por exemplo, administra um fármaco a um paciente.
Por fim, e de forma a medir e controlar a eficiência de toda esta função, dotarem-se de ferramentas de Business Intelligence que permitam desenhar e monitorizar os leading KPI relevantes para o setor, adotando algoritmos que permitam prever e tomar decisões atempadas de forma a lidar melhor com situações como as que hoje vivemos.
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