I Quit, ou The Great Resignation é, na atualidade, um dos temas presentes e desafiantes na realidade das empresas e da sociedade em geral. Emergindo da pandemia, ansiosos por uma vida diferente da que usufruíam anteriormente, um número recorde de trabalhadores demite-se. Sem aviso prévio, sem razão aparente, algumas vezes mudando de carreira, mas muitas vezes sem uma alternativa que lhes garanta uma sustentabilidade financeira, simplesmente, deixam o emprego que tinham. O fenómeno, batizado pelo Professor Anthony Klotz, da Texas A&M University, tem as suas especificidades e varia entre geografias, setores económicos e, até mesmo, idade.
Nos EUA, onde é claramente mais acentuado, de acordo com o U.S. Bureau of Labor Statistics, as demissões atingiram um pico em abril de 2021 e têm-se mantido anormalmente elevadas. Em julho, por exemplo, 4 milhões de americanos abandonaram o emprego, ao mesmo tempo que se verificava um recorde de 10,9 milhões de postos de trabalho em aberto. E em agosto e setembro, de novo, os números aumentam.
Já um estudo publicado na HBR[1] identifica diferenças abissais entre diferentes setores económicos. Em concreto, conclui que as demissões até diminuíram ligeiramente em indústrias como a transformadora e o setor financeiro; mas na área da saúde e na tecnologia, o número de trabalhadores que se demite aumentou 3,6 % e 4,5 % respetivamente. Porventura devido ao facto de estes últimos serem setores com uma procura acrescida devido à pandemia, o que provavelmente levou a um aumento da carga de trabalho, mas também das oportunidades de mudança
Este mesmo estudo mostra ainda que os trabalhadores entre os 30 e os 45 anos representam a faixa etária com o maior aumento nas taxas de demissão (superior a 20 %) entre 2020 e 2021. A rotatividade era habitualmente superior nos trabalhadores mais jovens, mas, com surpresa, nos últimos 2 anos, não é nesta faixa que se verifica a maior taxa de abandono. A segurança no emprego pode gerar uma barreira à saída, mas, nestes momentos de incerteza, pode, paradoxalmente (ou talvez não), verificar-se uma maior apetência por arriscar. Na realidade, quando chegados a um ponto de saturação, após meses e meses de muito trabalho e difícil conciliação com os âmbitos familiares e sociais, muitos são levados a repensar os seus objetivos de trabalho e de vida. Contra-intuitivamente, para a maioria não parece ser uma questão salarial, embora a compensação seja sempre um fator relevante.
Na Europa, a maré parece não ter a mesma força, mas a verdade é que o fenómeno é mundial e o seu impacto globalmente assolador. Vale a pena por isso refletir sobre o tema e a razão de ser do mesmo.
A cultura tóxica de muitas organizações – definida como um local de trabalho onde os colaboradores não se sentem respeitados e valorizados, ou os líderes não são éticos, ou a empresa não é inclusiva – é uma razão suficiente forte e há mesmo quem afirme tratar-se da principal causa.
Contudo, em minha opinião, a verdadeira razão tem muito mais a ver com uma profunda mudança de paradigma cultural, a qual, embora viesse a ganhar forma desde há anos, acabou por, naturalmente, ser muito acelerada com a pandemia. Hoje as pessoas pensam, e tendem a agir, de forma diferente. E esse modo diferente de ser reflete-se na vivência de toda a rede de relações pessoais, desde a família e os amigos, às relações laborais e ao próprio compromisso cívico e social.
Em concreto, esta mudança nas pessoas manifesta-se, essencialmente em 3 aspetos fundamentais: um maior sentido de afirmação pessoal, um reformular das aspirações e uma diferente valorização da vida.
Em primeiro lugar, muitas pessoas parecem ter desenvolvido uma nova força interior. Para tal não é alheio o facto de o trabalho a partir de casa esbater as fronteiras entre a vida profissional e privada. Apesar dos fundos esbatidos do Zoom ou Teams, os colegas, a equipa, todos entraram e ficaram a conhecer a casa e a família de cada um. Tal facto levou a que encontrassem uma nova confiança em si mesmas e a partilhar preocupações e sucessos pessoais ou familiares com a sua equipa, no trabalho, de uma forma muito mais aberta e humana do que acontecia anteriormente quando os dois ambientes se estabeleciam como âmbitos separados.
Mas, além desta afirmação da vida como um todo, o encontrar sentido e ver o impacto com o que se faz é hoje bastante valorizado nas decisões pessoais porque se experimentou a fragilidade e se entendeu a transitoriedade da própria vida.
Para além disso, alavancada numa capacidade de adaptação e resiliência pessoais, que muitos desconheciam e apenas descobriram com a pandemia, gerou-se uma grande abertura a novas possibilidades. O padrão de consumo alterou-se acentuando uma maior sobriedade e o fazer caseiro. E, por isso, tornou-se mais fácil complementar as ajudas estatais ou mesmo substituir um rendimento primário baixo, continuando a desfrutar de uma vida satisfatória. Desde serviços de proximidade a transformar os hobbies e talentos em negócios de plataforma, muitos foram os que, entretanto, viram oportunidades e tomaram a iniciativa de empreender. E alguns desses descobriam, então, um trabalho muito mais motivador e uma vida não apenas satisfatória, mas muito mais gratificante.
Por último, a vida que se vive e se partilha com outros é hoje apreciada de forma diferente. As prioridades sobre onde gastamos o nosso tempo, a nossa energia e a nossa atenção são hoje diferentes. Damos uma maior importância às relações próximas e significativas na nossa vida. Cuidamos mais de nós mesmos, mas, sobretudo, dedicamos mais tempo a cuidar de outros, seja a educar os filhos ou a apoiar os pais ou a ajudar a comunidade de que, em última análise, dependemos. Esta preocupação para com os outros, que se estende à preocupação com o planeta em que vivemos, é um traço de carácter genuinamente humano e torna-nos mais humanos.
Esta mudança nas aspirações e atitude perante o trabalho e a vida em geral tem, como é lógico, um impacto direto e preocupante na gestão das pessoas na organização, começando, desde logo, na relação de poder entre o colaborador e a própria organização. O grande desafio que se coloca hoje às empresas é o de equilibrar a flexibilidade a oferecer a cada um dos seus colaboradores, tendo em conta as suas ambições e o seu modo de vida, com as necessidades de colaboração em equipa e de inovar e contribuir para a missão e o bem maior da organização, de forma a que esta prospere. Mas isto será tema para um próximo artigo
Claro que tudo isto pode não passar de um fenómeno transitório. Talvez daqui a uns meses, a situação económica seja, para muitos, insustentável e o mundo volte a ser como dantes. Ou talvez o momento atual reflita uma mudança permanente nos valores e na noção de felicidade das pessoas. E talvez demore o tempo suficiente para que entretanto, individual e coletivamente, se vão tecendo novas relações, mais positivas e humanas, que criem um novo tecido de vida, bom para as pessoas, para as empresas e para o planeta.
Publicado no JN
[1] https://hbr.org/2021/09/who-is-driving-the-great-resignation
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