A guerra na Ucrânia lançou uma nuvem densa sobre o mundo, devido aos danos que causa, à dor que inflige, ao medo que espalha. Quando os indicadores são o número de mortos e de refugiados está tudo mal. Não há guerras limpas! Mesmo com as iniciativas que se multiplicam de generosa ajuda solidária, mesmo com abundantes histórias de heroicidade e humanidade, protagonizadas seja por ucranianos, russos ou estrangeiros que, no terreno, fazem a diferença, a verdade é que na guerra, nesta também, sempre se pisam os direitos humanos, sempre há inocentes que sofrem! E nesta guerra, como em todas, as consequências serão graves e profundas, seja a nível económico, a nível político ou ainda a nível humano.
Dizia, na AESE, o saudoso Prof. Calleja, citando livremente Bertrand de Jouvenel, que “um problema político se diferencia de outro tipo de problemas porque não pode ser resolvido: só é passível de acordo, o que é uma coisa completamente diferente”. Enquanto uma solução satisfaz, por definição, todos os termos do problema, um acordo não chega a esse resultado. E por isso há que priorizar, negociar, utilizar critérios, criar planos B, ter aliados adequados, etc. Sobretudo, há que não esquecer que se procura chegar a um acordo que permite seguir em frente e que os acordos, mesmo que seculares, são, por definição, transitórios. As circunstâncias mudam e pode sempre chegar o momento de fazer um novo acordo mais adequado.
A Ucrânia é um bom exemplo deste grande dinamismo geopolítico que pode ocorrer. É bom relembrar que foi somente durante o tempo da União Soviética que adquiriu a sua atual configuração geográfica. Significa que falamos de um território unido politicamente há menos de 70 anos e como país independente ainda menos, 31 anos. Para além disso, foi criada a partir de sucessivas cedências e respetivos decretos, o que faz deste país uma complexa entidade multicultural e multiétnica. Curiosamente, ou nem por isso, é a Rússia, autoproclamada herdeira da antiga União Soviética, que de novo tenta redesenhar a linha de fronteira da Ucrânia.
Uma interessante característica desta diversidade étnica é, aliás, a diversidade religiosa. Enquanto a leste e no centro vivem predominantemente ortodoxos, de língua russa, a ocidente há ortodoxos, católicos, católicos gregos e judeus que falam sobretudo ucraniano, mas também húngaro, romeno e outros dialetos regionais.
Um dos eventos mais conhecidos que corrobora a dificuldade de manter unido um conjunto tão diverso de concidadãos foi o recente conflito sobre o papel de Moscovo e do Patriarcado de Moscovo na Ucrânia. Em linha com a independência da Ucrânia, em 2019, o Patriarca Ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu I, entregou em Istambul ao primaz da nova Igreja Ortodoxa da Ucrânia o “tomos”, ou seja, o decreto que confirma a criação da nova Igreja, independente da Rússia, com direito à plena autonomia do Patriarcado de Moscovo em matéria religiosa. A decisão não foi unânime. Pelo contrário, suscitou grande discórdia, mas o caminho trilhado foi simples e natural: enquanto algumas igrejas ortodoxas ucranianas se juntaram à Igreja Ortodoxa Ucraniana, outras recusaram e permaneceram no Patriarcado de Moscovo. E as duas coexistem hoje, cordialmente, nas mesmas cidades, nos mesmo bairros, entre vizinhos e amigos.
Ora, no plano político, não é a unidade nacional que está em causa já que esta foi assumida, depois consolidada com a independência e, quem sabe, reforçada com a declaração de guerra e a invasão russa. Neste momento, o que está em causa é o desejo de estabelecer, discricionariamente, novas fronteiras e a utilização da força para o conseguir. Nesse sentido, todas as diligências são poucas para encontrar um modo de convivência acordado e respeitado entre países.
Para tal, o papel da comunidade circundante que pode ser mobilizada para ajudar os partes a chegar a acordo é de extrema importância e são, por isso, de saudar, as severas sanções que, em uníssono, a Europa decidiu aplicar à Rússia. Primeiro porque são realmente penalizadoras, colocando a Rússia numa situação de isolamento financeiro e económico, mas sobretudo porque revelaram uma Europa de causas, unida, solidária e batalhadora, como nem na pandemia se tinha visto. Resta ter esperança de que o resultado seja mais eficaz do que aquando da aplicação de sanções à Coreia do Norte ou à Venezuela.
Porém o papel que a Europa está a desempenhar até agora não chega. É necessário mais. Pode ser dissuasor da guerra, pode até viabilizar a paz, mas não o futuro. Para se chegar ao futuro não chega não destruir, há que o construir.
Neste sentido é muito inspirador o discurso de Martin Kimani, embaixador do Quênia, no Conselho de Segurança da ONU, a 22 de fevereiro. Começando por estabelecer um claro paralelo com a Ucrânia, relembra que o Quénia e a maioria dos países africanos nasceram com o fim de um império, as suas fronteiras não foram traçadas pelos próprios e que esse desenho não teve em consideração a identidade cultural das históricas nações africanas, pelo que também hoje, existem povos africanos que falam a mesma língua e vivem separados por uma fronteira. Contudo, prossegue Martin Kimani, se tivessem escolhido bater-se pela independência com base na homogeneidade étnica, racial ou mesmo religiosa, ainda hoje estariam num cenário de guerra sangrenta. Em vez disso, decidiram aceitar as fronteiras e lutar pela integração económica e política em termos continentais, no seio da união africana. Nas suas palavras “em vez de formar nações sempre a olhar para trás com uma nostalgia perigosa, escolheram seguir em frente por uma grandeza que nenhuma das muitas nações e povos africanos jamais tivera… não porque as fronteiras os satisfizessem, mas porque ambicionavam algo maior forjado na paz”
Não há mais a acrescentar, senão a esperança de que hoje, na Ucrânia, mais além da paz também se ambicione algo maior, forjado na paz.
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