As eleições americanas, uma vez mais, revelaram as profundas cisões que permeiam o mundo contemporâneo, não apenas no âmbito das políticas, mas sobretudo no tom e na qualidade do discurso. Nos dias que precederam o escrutínio, a acrimónia atingiu níveis exaustivos.
É verdade que tal se tornou comum no cenário político, especialmente em países vivendo períodos de grande polarização ou de eleições acirradas. Tal como aconteceu nestas eleições, dominaram os insultos, acusações e invetivas. Mais além das críticas ou discordâncias de opinião, fruto de diferentes visões sobre um conjunto relevante e alargado de temas, a vilania foi o modo de comunicar mais utilizado, buscando, com linguagem muitas vezes violenta, ferir a dignidade ou reputação do candidato opositor e exacerbando as tensões sociais.
Embora o ecossistema mediático moderno amplifique tais hostilidades de forma extraordinária, estas táticas não são novidade na História da política em geral, e da política americana em concreto. Basta recordar os debates tão intensos quanto ferozes entre Thomas Jefferson e John Adams, ambos considerados, em termos de ideias, de instituições e, até, de geografia, “pais fundadores” dos Estados Unidos.
Na realidade, a continuada disputa entre Jefferson, republicano, e Adams, federalista, moldou a identidade política dos Estados Unidos e estabeleceu as bases para o sistema bipartidário que persiste até hoje. Mais ainda, as suas ideias continuam a ser relevantes para o debate político contemporâneo, especialmente em relação a temas de direitos individuais, ao papel do governo e às relações entre o governo federal e os estados.
Contudo, o que hoje parece mais ausente, no meio de tanto tumulto, é um debate sério sobre os problemas prementes que afligem os próprios Estados Unidos, como a sua colossal dívida pública, a profunda desigualdade económica e social ou a epidemia de opioides, para citar alguns. Esta falta de profundidade constitui uma ameaça para a própria democracia. Depõe não apenas contra a classe política, mas também contra um eleitorado que, por apatia ou desilusão, ao não exigir melhor, se torna cúmplice de uma farsa coletiva que, no final, a todos prejudica.
À medida que se alternam os ciclos políticos, torna-se evidente que muitos entre as elites políticas e mediáticas abandonaram a devoção, a reflexão e o compromisso para com o bem comum. Figuras como Abraham Lincoln, que apelavam às virtudes mais elevadas e ao sentido de responsabilidade coletiva, parecem ser hoje uma memória poética, longínqua e melancólica.
Não é assim; ou melhor, não deveria ser assim. Valeria a pena voltar a reler o Discurso de Gettysburg, proferido por Lincoln em 1863, não apenas porque é eloquente e conciso (apenas 272 palavras), mas por se tratar de um manifesto atemporal sobre a democracia e a responsabilidade coletiva, apelando ao papel de cada geração para que, sobre o legado das anteriores, continuem a sempre dinâmica construção de uma nação (um futuro) mais justa e equitativa.
Por contraposição a este sentido de estado, o panorama político é agora dominado por uma busca frenética pela gratificação imediata – seja no sensacionalismo mediático ou nos ataques partidários -, em detrimento da deliberação necessária para soluções estruturantes e duradouras. Neste sentido, a advertência de Bernard Lonergan (para não citar apenas presidentes americanos) sobre os perigos de negligenciar o rigor intelectual ressoa de forma perturbadora: o sistema político, preso num ciclo de impulsividade e reatividade, compromete a qualidade e reflexividade das decisões políticas. Esta impaciência (que não deve ser confundida com sentido de urgência), aliada ao rebaixamento do discurso público, enfraquece e, mais uma vez saliento, ameaça os próprios alicerces da democracia.
No meio desta turbulência, urge redescobrir os princípios autenticamente democráticos, ancorados em valores como a gratidão, a paciência e a fidelidade, só para citar alguns menos óbvios, muitas vezes discretos e talvez por isso mais esquecidos. A escalada de um espírito “vingativo” dentro de certos grupos “democráticos” corrompe a essência e o legado desta tradição. A verdadeira postura democrática assenta no bem comum, nas pessoas e nas famílias, na história e nas práticas que tecem as comunidades.
Os resultados das eleições, independentemente da sua natureza, devem incitar à reflexão, e não ao regozijo ou desespero pessoal e desmedido. A tarefa que se impõe não é perpetuar um ciclo de ira ou ódio, mas antes encarnar virtudes de temperança, civilidade e ação construtiva. Só cultivando tais valores poderão as democracias superar o clima de divisão e recuperar o espírito de uma governação digna e virtuosa. Só cultivando tais valores poderão as democracias continuar a ser aperfeiçoadas. Só cultivando tais valores poderão as democracias continuar a ser o catalisador da responsabilidade coletiva para com o presente e o futuro, do sonho partilhado sobre que legado, que marca cada geração quer oferecer às gerações seguintes.
Publicado no Jornal de Negócios “Dean´s Corner”