O que mudou após três anos de Guerra na Ucrânia?
No início de 2025 referia que este ano se poderia definir como um ano de estabilidade em tempos de instabilidade. De facto, de algum modo, ao longo dos últimos anos, desenvolvemos esta capacidade de lidarmos com o improvável e o inimaginável e (sobre)vivermos num mundo onde o presente é volátil e o futuro incerto. Mas, ao mesmo tempo, continuamos a demonstrar uma incapacidade de avançar, com compromisso e determinação, para soluções que resolvam, de forma estrutural, os desafios que consideramos “prementes”. Seja porque essas soluções exigem colaboração a nível mundial ou entre parceiros improváveis, seja porque a complexidade e o entrelaçado dos temas paralisam por ser impossível abranger todas as correlações, a verdade é que as tendências continuam, ano após ano, a ser tendências, continuam a ser debatidas e a evolução continua a avançar a um ritmo moderado.
Prova disso mesmo, é o encontro anual em Davos. Desde a pandemia, para não ir mais atrás, que os mesmos grandes temas se mantêm em palco: a Geopolítica a ser a grande protagonista, com as tensões a nível mundial e os desafios crescentes à cooperação global; contracenando com a Economia, com a Ásia a liderar o crescimento mundial, as economias emergentes a crescerem a um ritmo robusto e a Europa com um crescimento anémico; e a completar o elenco, os chamados temas do “futuro” como a Inteligência Artificial, a acelerar tecnologicamente mas com uma penetração ainda tímida na maioria das indústrias e a Transição Energética, com avanços relevantes mas equilíbrios ainda difíceis de atender. Talvez o maior valor de Davos seja o diálogo que se gera entre entidades muito díspares pelo simples facto de se encontrarem pessoalmente. E, por isso, já vale a pena.
Contudo, existem cenários que nos devem igualmente interpelar e em relação aos quais esta complacência (ou mesmo esquecimento) mundial não é aceitável. Refiro-me a situações de conflito, em concreto, vem-me à memória mais um aniversário da Guerra na Ucrânia.
Todos os dias, nessa frente de batalha, continuam a morrer soldados – ucranianos e russos. Todos os dias, tragicamente, é derramado sangue de pessoas que têm um nome e uma família. Todos os dias, tragicamente, são lançados drones e mísseis, nas suas diferentes variantes, produzindo estragos materiais e perdas humanas. As cidades anteriormente com vida deram lugar a montes de escombros. Já houve picos de maior tensão, já houve momentos de maior drama. Os números vão variando. Quase parece tilintar grotescamente a famosa frase de Stalin: “Uma morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística.” Vivemos ao longo dos últimos três anos uma contínua tragédia. Fronteiras que avançam, fronteiras que recuam; frentes que se abrem, frentes que se fecham; soldados que morrem, soldados que sobrevivem.
Zelenskyy esteve presente em Davos, mas discretamente. Longe vão os tempos em que ele próprio era a notícia. Algo mudou em três anos. Ora, se no seu essencial a guerra não mudou, então o que mudou? No meu entender, duas variáveis mudaram: o dramatismo curto-prazista dos media e a banalização do mal por parte de todos nós. E o que é curioso é que estes dois fenómenos se alimentam mutuamente.
É fácil recordar os jornais de fevereiro/março de 2022. Não havia outro tema. Fomos invadidos por imagens da Ucrânia vitimada. Os tempos de antena, antes preenchidos com os boletins de vacinações, foram inteiramente substituídos por análises militares e crises humanitárias. A nossa atenção foi hiper-absorvida com o que se passava no Leste da Europa. Hoje, já não é assim. Não são raros os dias em que os principais noticiários nem sequer mencionam o assunto, mesmo mantendo-se a guerra igualmente trágica.
Mas não foram só as prioridades dos media que mudaram. Nós próprios também mudámos. A indignação, na maioria das vezes, não passa de um impulso momentâneo. Com o tempo, vence-nos o cansaço de condenar os crimes, mesmo quando estes permanecem impunes. Se a indignação não for acompanhada por uma ação constante e determinada, cedo se esgota. Perante a persistência do mal, muitos sentem-se impotentes e acabam por regressar à apatia, habituando-se à coexistência com o próprio mal, conformando-se com a normalização da injustiça.
No entanto, aquele que se habitua a um mal e nele se acomoda, pactua silenciosamente com o mesmo. Se reconhece a sua existência, se se indigna com o mal, mas nada faz para o erradicar, está a abrir caminho à indiferença e ao individualismo e estes fecham-nos ao destino dos que nos rodeiam, anestesiando o coração.
Não fazer nada de mal, não basta. Porque se mata também com o silêncio, mata-se também com o estar à janela. O exato contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença, que reduz o outro a nada: não o vejo, não existe. O maior mal é ter perdido a capacidade de ver, de escutar, ter perdido a sensibilidade fina do coração.
A indiferença e a inércia perante a injustiça são, em si mesmas, uma forma de cumplicidade. Não podemos nem devemos, invocando a distância, o descuido ou o puro desinteresse, perder a capacidade de chorar com aqueles que choram. É imprescindível que resistamos ao efeito narcotizante deste hábito perverso que nos retira humanidade. Há que o enfrentar com paciente fortaleza.
Há 3 anos, um casal amigo recebeu uma família de refugiados (mãe e 4 filhos; o pai permaneceu a combater), ajudou-os a encontrarem um trabalho que lhes devolvesse a dignidade, uma escola que acolhesse os filhos e uma casa onde pudessem voltar a reconstruir o lar. Até aqui, como este casal conheço alguns. Mas há pouco tempo reencontrei-os e contaram como, com constância e perseverança, nunca se cansaram, nunca deixaram de se manterem atentos e assim se tornaram verdadeiramente amigos dessa família. Hoje continuam a visitar-se e apoiar-se mutuamente. Destes casais, destes heróis, conheço muito poucos.
Em larga medida, a nossa vida é constituída por acontecimentos imponderáveis e neste mar, como Fernando Pessoa gostava de chamar à vida, a nossa nau é por vezes sacudida por fortes ondas e tempestades. A fortaleza torna-nos marinheiros resistentes e resilientes, que não se assustam nem desanimam. Mestres da nossa própria nau, conhecedores dos Pontos Cardeais, superamos obstáculos e seremos capazes de conduzir a nau a bom porto.
Artigo publicado no Dean’s Corner do Jornal de Negócios
Tip of the week
“A chave para a inovação digital é aprender a usar dados para tomar decisões mais rápidas e inteligentes” Andrew McAfee