Estamos muito focados no presente, na conjuntura. Geralmente, tendemos a olhar para os desafios do presente com uma lente que lhes aumenta a importância. Pelo contrário, sofremos de miopia quando encaramos os desafios do futuro. A nossa visão telescópica defeituosa, na célebre expressão de Pigou, projecta-os demasiado longe, e descontamos-lhes a importância. É certo que, como escreveu Carl Menger, o economista fundador da escola austríaca, precisamos do presente para chegar ao futuro. Mas os desafios do futuro estão já bem presentes.
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- Desafios do presente
O presente e o curto prazo estão dominados pelas expectativas de saída da crise e pelo endividamento bancário e as moratórias de crédito. O sentimento geral das empresas parece ser de expectativa prudente e de adaptação. Segundo dados do Banco de Portugal, 74% das empresas planeiam manter os postos de trabalho em 2021. 59% consideram muito provável a redução do número de viagens de negócios e 31% o uso mais intensivo do teletrabalho[1].
O sentimento é mais de incerteza que de pessimismo, quando se confrontam dois cenários opostos relativos à pandemia. Assumindo que a pandemia é efectivamente controlada em 2021, 62% das empresas não conseguem antecipar se o seu volume de negócios voltará ou não ao nível normal; 34% consideram que a actividade voltará ao normal num intervalo médio de 9,8 meses; e 4% não prevêem o retorno ao nível normal. Num cenário mais negativo, de agravamento das medidas de contenção da pandemia e de ausência de medidas adicionais de apoio, 84% das empresas não prevêem o encerramento, mas 16% das empresas estimam não conseguir subsistir, em média, mais de 7 meses num tal cenário.
Unidade: n.º de empresas ou de particulares[2][3] | Empresas | Particulares | Total |
Potenciais endividados | 1.335.006 | 8.424.599 | 9.759.605 |
Endividados | 241.071 | 4.636.364 | 4.877.435 |
Em % dos potenciais endividados | 18,1% | 55,0% | 50,0% |
Devedores em moratória | 54.000 | 408.000 | 462.000 |
Em % dos endividados | 22,4% | 8,8% | 9,5% |
Em % dos potenciais endividados | 4,0% | 4,8% | 4,7% |
Unidade: milhares de milhões de euros (MM€) | |||
Total da dívida bancária | 72,3 | 124,2 | 196,5 |
Dívida em moratória | 24,0 | 20,0 | 44,0 |
Em % do total da dívida bancária | 33,2% | 16,1% | 22,4% |
Tabela 1. Fonte: Dados do Banco de Portugal (Janeiro de 2021) e Pordata.
A tabela demonstra que o endividamento é muito menos disseminado do que se poderia pensar. Por essa razão, os devedores em moratória representam uma proporção muito reduzida dos particulares e das empresas (4,7%). Os particulares estão comparativamente mais endividados do que as empresas, seja em percentagem (55%), seja no montante da dívida. Contudo, o potencial incumprimento por parte das empresas é mais preocupante. A dívida em moratória das empresas representa um terço da dívida empresarial, e a insolvência das empresas pode criar problemas de tesouraria a outras empresas e reduzir drasticamente os rendimentos dos colaboradores, que ficariam impossibilitados de servir as suas dívidas. Acresce que não foram apenas as PME a ser afectadas. Aderiram à moratória cerca de 400 grandes empresas (30% das 1.357 existentes), cuja dívida ascende a 3,9 MM€. Existe um risco razoável de um efeito “bola de neve”.
Crédito à habitação | Jan-21 |
N.º de créditos à habitação | 2.118.182 |
N.º de devedores em moratória por crédito à habitação | 302.900 |
Em % do n.º de créditos à habitação | 14,3% |
Em % do n.º total de devedores em moratória | 74,2% |
Saldo em dívida (MM€) | |
Total do crédito à habitação | 96,3 |
Em moratória | 17,1 |
Em % do total do crédito à habitação | 17,8% |
Em % do crédito em moratória | 85,7% |
Tabela 2: Dados do Banco de Portugal (Janeiro de 2021)
O endividamento dos particulares suscita alguma preocupação, visto que o crédito à habitação, garantido pelo valor dos imóveis, é apenas uma fracção do total (74,2% em n.º de devedores e 85,7% em valor). Num cenário em que os preços do imobiliário não desçam abruptamente, seria relativamente simples acomodar a restruturação deste crédito. É um sinal positivo que 86 mil devedores (21% do total) tenham já retomado o pagamento dos créditos à habitação. Contudo, existem 2,9 MM€ de outros créditos particulares em moratória, o que pode afectar os segmentos de crédito ao consumo, crédito estudantil e crédito automóvel.
As partes envolvidas têm os incentivos adequados para restruturar a dívida e evitar o incumprimento definitivo. Não interessa aos bancos acumular grandes volumes de crédito mal-parado, que obrigariam a constituir provisões, penalizadoras da rendibilidade e dos rácios de capital. Tampouco lhes interessará voltar a gerir 300 mil imóveis entregues como dação em pagamento dos empréstimos. Por outro lado, a dívida das empresas está garantida, na maior parte dos casos, com o património pessoal do empresário, o que desaconselha a opção de deixar falir a empresa e “abrir outra ao lado”. A reestruturação pode efectuar-se, para empresas e particulares, por extensão das maturidades e introdução de períodos de carência de capital. Apenas nos casos mais extremos – aquisição de empresas em dificuldades e processos especiais de revitalização e insolvência é que serão inevitáveis os descontos (hair-cuts) nos empréstimos, a coroa de glória de muitos compradores de empresas e empresários em dificuldades.
As palavras cautelosas proferidas presidente da Associação Portuguesa de Bancos na audição parlamentar, com referências a «esforço musculado do Estado», «soluções de subsídios a fundo perdido» e «capitalização das empresas com garantia do Estado» não são um bom sinal. É certo que os últimos anos foram penalizantes para a banca, que é insusbtituível no financiamento da economia. Mas, os exemplos mais ou menos recentes de transferência do risco bancário para o Estado e de utilização de dinheiro público para resolver problemas de crédito bancário, com o inevitável encorajamento do risco moral, não foram felizes e não deveriam repetir-se. A título positivo, note-se que a esmagadora maioria das empresas ainda possui capacidade de endividamento, que pode utilizar para financiar o seu crescimento.
O mesmo não pode dizer-se da capacidade de financiamento do Estado. A Tabela 3 demonstra que, se a dívida pública esteve relativamente estabilizada até 2020 – crescendo pouco em valor absoluto e descrescendo em proporção do PIB – esse cenário alterou-se no ano transacto. O aumento da dívida, em 20, MM€, foi quase o dobro da quebra do PIB (11,5 MM€). Está o Estado a adiantar à sociedade o financiamento da bazooka europeia? A ser assim, quanto sobra do que está para vir?
Dívida Pública e PIB | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | 2020 | 2021 |
Dívida Pública (MM€) | 245,24 | 247,17 | 249,26 | 249,98 | 270,49 | 275,98 |
Dívida Pública em % do PIB | 131,5% | 126,1% | 121,5% | 116,8% | 133,6% | 131,2% |
PIB (MM€) | 186,49 | 195,95 | 205,18 | 213,95 | 202,47 | 210,36 |
Crescimento nominal do PIB | 3,8% | 5,1% | 4,7% | 4,3% | -5,4% | 3,9% |
Tabela 3: Pordata, INE e Banco de Portugal (previsão de crescimento do PIB em 2021).
Se a sociedade quiser confiar ao Estado o papel de motor do desenvovimento, a reduzida capacidade de financiamento do Estado parece condenar-nos ao crescimento anémico dos últimos anos, insuficiente para nos fazer convergir com as economias mais avançadas da OCDE. Parece que é nas empresas portuguesas, e na capacidade de os seus empresários e gestores assumirem risco, que assentam as nossas melhores hipóteses de crescimento.
[1] Banco de Portugal e INE (Novembro de 2020). Inquérito Rápido e Excecional às Empresas – COVID-19.
[2] O universo dos potenciais endividados particulares é a população portuguesa com mais de 19 anos.
[3] “Endividados” são todas as empresas e particulares que têm, pelo menos, um empréstimo bancário, sendo frequentes os casos em que existe mais do que um.
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