Este artigo descreve as ligações entre a crise de saúde pública derivada da pandemia Covid-19 e a forte crise económica que está a formar-se e explica as várias medidas que já foram adotadas pelos bancos centrais e pelos governos. Porém, há dúvidas se estas medidas são suficientes para debelarem estas crises que já são históricas pela sua anormal dimensão. E há ainda uma questão por responder: no final, quem mais sofrerá com a crise?
No fim, quem paga a crise?
1. Vivemos uma crise terrível e devastadora. Na verdade, são duas crises, duas faces de uma moeda má e negra – como a peste. Por um lado, a pandemia do Covid-19 é a maior crise mundial de saúde pública desde a gripe espanhola em 1918. Por outro lado, a crise económica, que se está a formar, poderá igualar os efeitos da II Guerra Mundial. Qual das crises atacamos primeiro? Sem dúvida que a pandemia do Covid-19 (e com todas as nossas forças). Como diz o adágio popular, “temos que salvar vidas, custe o que custar”.
O problema está aqui: será o custo demasiado alto? Abusando dos adágios populares: “quem não morre da doença, pode morrer da cura”? As medidas adotadas para combater a pandemia vão ter um custo insuportável para a nossa economia, destruindo capacidade produtiva, emprego e lançando uma fatia larga da população no desemprego e na pobreza?
Nas sociedades ocidentais, construídas em cima da matriz judaico-cristã, o valor da vida é sagrado. Portanto, salvar uma vida nunca é demasiado caro. A vida não tem preço. Porém, também seremos irresponsáveis se negligenciarmos os efeitos da hecatombe económica. Estas crises são gémeas-siameses. Da mesma forma que estão entrelaçadas, também têm que ser atacadas em simultâneo.
2. O FMI já avisou: esta crise económica vai ser pior do que a que resultou dos profundos problemas financeiros de 2008. Na sexta-feira (3 de abril de 2020), o influente Financial Times publicou na sua capa um gráfico que ficará para a história: numa única semana, 6,6 milhões de norte-americanos pediram apoio para o desemprego, duplicando face aos 3,3 milhões da semana anterior. Desde que há registos, nunca se viu um fenómeno com esta gravidade.
Ainda ninguém consegue adivinhar a dimensão total desta crise económica mas os primeiros dados antecipam uma devastação sem precedentes. Para a economia nacional, o Banco de Portugal prevê, para já, uma contração do PIB que pode ser de quase 6% em 2020 (num cenário adverso) e a taxa de desemprego a saltar para os dois dígitos. As últimas projeções para as principais economias mundiais avançam valores semelhantes, havendo mesmo quem arrisque quebras no PIB na ordem dos 20%. Não tenhamos dúvidas, se este nível de destruição económica se confirmar, uma parte importante da população nacional e mundial vai ser empurrada para a pobreza, cavando-se ainda mais o fosso que já existe entre ricos e pobres.
3. Porque é que esta crise económica é tão profunda? As medidas – muito acertadas – de combate à pandemia, adotadas pelas autoridades na esmagadora maioria dos países, provocaram um fenómeno económico raro – uma crise simultânea do lado da oferta e da procura. (A maioria das disrupções económicas nasce de um lado da economia)
Como todos nós – e bem – temos que ficar em casa para evitar a propagação do vírus, a economia foi colocada no congelador. Por outras palavras, hibernou. E ninguém sabe por quanto tempo. Porém, uma economia parada não produz, não cria emprego e riqueza. Do lado da procura, as pessoas em casa não consomem e não há investimentos. Do lado da oferta, com as empresas fechadas por ordem das autoridades, não há produção, não há vendas, não há exportações. Resultado disto, as empresas não faturam e portanto abrem falência e empurram os trabalhadores para o desemprego.
A gravidade desta crise é que se auto-alimenta. Quanto mais tempo a economia está em hibernação, mais graves são os efeitos. Infelizmente, quando descongelarmos o sistema produtivo, a economia não está intacta, estará em muito pior estado. Há empresas que já não vão abrir porque não tiveram músculo financeiro para suportar a paragem; há cadeias de fornecedores que se perderam; há sectores, como o turismo, que ficaram sem parte dos clientes; e o desemprego agravará as quebras do lado da procura. Se a hibernação da economia se prolongar por demasiado tempo, podemos entrar numa espiral recessiva, caindo no buraco fundo da depressão económica.
4. Por isto, a maioria das medidas de combate à crise económica que já foram tomadas têm como objetivo proteger a capacidade produtiva. Por outras palavras, pretendem que, depois de terminadas as medidas de emergência que obrigam ao confinamento em casa, tudo volte à normalidade o mais rapidamente possível. Na terminologia dos economistas, teríamos uma crise em “V”, com uma quebra abrupta no segundo trimestre de 2020 procedida de uma recuperação rápida no segundo semestre do ano e em 2021.
Para isto, é importante minimizar o número de empresas que vão à falência durante o período de hibernação da economia. É necessário não esquecer que, embora a economia esteja parada e sem produção, as empresas têm custos fixos como, por exemplo, os salários dos trabalhadores, as rendas das instalações, impostos e contribuições para a Segurança Social e custos com os créditos que fizeram no passado. Porém, dada a dimensão do lockdown, isto é mais fácil de dizer do que de fazer.
5. Repetindo o que aconteceu na crise de 2008, os bancos centrais foram os primeiros a ter uma atuação rápida, minimamente coordenada e eficiente, conseguindo colocar gelo nos mercados, nomeadamente de dívida pública, que se mostravam efervescentes perante os primeiros sinais agudos de crise económica. Mesmo o BCE, que teve uma partida em falso, recuperou rapidamente e voltou a mostrar a sua capacidade de atuação. Os bancos centrais tiveram, para já, quatro tipos de medidas no âmbito da política monetária e da supervisão:
a. Linhas de crédito a juros negativos para os bancos. No fundo, estão a pagar aos bancos comerciais para emprestarem às empresas e aos particulares. Isto é importante para garantir que há liquidez (dinheiro) para que a economia continue a funcionar minimamente, apesar do estado de hibernação.
b. Forte intervenção nos mercados de dívida pública (por exemplo, o BCE anunciou um pacote de compras de 750 mil milhões de euros que somou a outros dois de 120 e 20 mil milhões de euros). Este tipo de intervenção tem vários objetivos. Primeiro, evitar a desfragmentação e disfuncionamento deste tipo de mercados com todas as consequências negativas que conhecemos desde a crise de 2011 em Portugal e na Grécia. Segundo, controlar a taxa de juro associada à dívida pública dos países, permitindo que os Estados continuem a financiar as suas políticas de combate à crise da pandemia nos mercados a custos controlados e geríveis. Isto é particularmente relevante para países como Portugal e Itália, que entram nesta crise brutal com níveis elevados de dívida pública. Terceiro, a estabilidade do preço dos títulos de dívida pública interessa aos bancos centrais pois muitas destas obrigações são usadas como colateral pelos bancos comerciais para levantarem as linhas de créditos junto do banco central.
c. Alguns bancos centrais, como a Reserva Federal dos EUA, baixaram a taxa de juro de referência para 0%. Neste período de baixas taxas de juro, que todos conhecemos desde a última crise, esta medida é mais simbólica do que efetiva. No fundo, pretende mostrar aos agentes económicos que os bancos centrais estão dispostos a fazer tudo o que está ao seu alcance para combater a crise económica.
d. Os supervisores também suavizaram temporariamente os requisitos prudenciais dos bancos. Vão permitir que os bancos operem temporariamente sem cumprirem as suas obrigações ao nível de rácios de solvabilidade e de liquidez.
6. Além destas ações, a Reserva Federal dos Estados Unidos adotou outras medidas mais abrangentes, tendo em consideração que tem um mandato mais alargado do que o BCE. A Reserva Federal tem estado particularmente ativa no mercado cambial garantindo que não faltam dólares, a principal divisa do comércio internacional. Com o lockdown generalizado na economia mundial, os países deixaram de exportar e logo deixaram de receber os dólares necessários para pagar as importações. Perante isto, começaram a vender ativos em dólares para conseguirem divisas, o que provocou uma pressão anormal neste mercado. Isto obrigou a Reserva Federal a intervir em concertação com outros bancos centrais para garantir a liquidez de dólares, evitando problemas ainda mais graves no comércio internacional.
7. Não há dúvidas que os bancos centrais têm estado ativos no combate à crise económica. Para muitos economistas, largaram a sua “bazuca”. Infelizmente, toda esta ação do lado da política monetária é insuficiente para resolver uma hecatombe com esta dimensão. Os bancos centrais acalmaram os mercados. No fundo, compraram tempo. Mas para resolver esta crise económica é necessária uma ação concertada com as autoridades políticas. É necessária política orçamental. E os governos têm estado a atuar, lançando medidas sucessivas com o objetivo de salvaguardarem a capacidade produtiva.
8. O FMI fez um bom resumo das medidas adotas pelos diferentes países. No caso português, o Governo anunciou um pacote com cinco dimensões:
a. Linhas de crédito com garantia estatal, operadas pelos bancos, para os sectores atingidos no valor de três mil milhões de euros (1,4% do PIB);
b. Adiamentos dos pagamentos de impostos (5,2 mil milhões de euros, 2,5% do PIB) e à Segurança Social (mil milhões, 0,5% do PIB) por parte de empresas e trabalhadores;
c. Sistema de lay-off simplificado, com o Estado a suportar parte dos salários dos trabalhadores, e apoios para quem está de quarentena ou foi obrigado a ficar em casa em suporte à família;
d. Reforço e transferências de verbas para o Serviço Nacional de Saúde e regras mais fáceis de procurement.
e. Moratória para empresas e famílias nos seus créditos junto do sistema financeiro.
9. Todas estas medidas vão no sentido certo. Como referido antes, pretendem aliviar os custos que as empresas têm, mesmo quando estão paradas, com os trabalhadores, com os impostos e contribuições e com os créditos junto da banca. Além disto, permitem que as empresas acedam a crédito para fazer face a outros custos enquanto não faturam por estarem sem atividade devido ao confinamento a que todos estamos obrigados. No fundo, estas medidas pretendem garantir a sobrevivência das empresas enquanto a economia está em hibernação, evitando a destruição de capacidade produtiva. A dúvida que muitos economistas colocam é se são suficientes perante a hecatombe económica que muitos antecipam.
10. Estes pacotes de medidas vão ter um impacto significativo no défice orçamental e na dívida pública. Há estimativas que apontam para, em média, saltos entre 10 a 20 pontos percentuais na dívida pública dos países da União Europeia. O problema é que nem todos partem do mesmo ponto. Portugal e Itália, por exemplo, têm níveis elevados de dívida pública, o que é uma condicionante séria para a dimensão da política orçamental que pode ser dedicada ao combate dos efeitos da pandemia. Agravamentos acentuados de dívida pública são um peso que atrasará a recuperação económica no futuro e podem colocar os países sob o olhar desconfiado dos investidores, tal como aconteceu na crise das dívidas soberanas.
11. Por isso, é tão pertinente a pergunta: quem paga a crise? Os governos dos países do sul da Europa têm defendido a mutualização da dívida que resulta das medidas contra a pandemia, num mecanismo de solidariedade europeia. Afinal, ao contrário da crise de 2008, esta não resulta da ação particular de qualquer país e atinge todos. Como dizem os economistas, é uma crise de origem simétrica e não há questões de moral hazard. Porém, os países do norte da Europa têm resistido. Portanto, para já, somos todos nós que vamos pagar a crise. Com a dor de quem, infelizmente, está doente, com o sofrimento da separação das pessoas de quem mais gostamos, com a subida, esperemos que temporária, do desemprego e da pobreza e com os nossos impostos no futuro. Mas é necessário resistir e, de imediato, atacar as duas crises em simultâneo.